O sabor da criatividade – fragmento do livro Ecologia e Criatividade
Abril anuncia nuvens e trovoada
Abil é fruta de sabor acre
Quando maduro
Abre-se em gomos brancos
E sementes brilhosas
Ao ser aberto e comido
Deixa na boca um desejo
Que não se quer consumar
Deixa na mão um grude hábil
Há tempos
não sinto
o gosto abil
maspre sinto
oabil que não comerei
abril anuncia
nuvens carregadas
de notícias ruins
O sabor da criatividade
Na ladeira de um bairro popular, em São Luís, às duas horas da tarde, caminhava na direção de casa, cansado e com fome. De repente me vi fisgado por um odor familiar. Senti-me em um desenho animado seguindo o aroma no ar, aquela nuvenzinha que sempre aparece em situações semelhantes.
Um cheiro de peixe de água doce, cozido na água e no sal, com cheiro verde e chicória. Esse prato típico da gente do norte deve ser comido quente, acompanhado de farinha branca, com pirão, e molho de pimenta.
Não sei de onde saía o cheiro. Mas aquele aroma conduziu-me à infância. Envolvido pelo odor, ouvia os passos da minha mãe, na cozinha; o barulho da brasa estralando no fogão de lenha, e o cheiro da comida simples que iria consumir em alguns minutos, servido em uma panela grande, de onde minha mãe retirava porções generosas de caldo, pequenos peixes, com suas carnes delicadas e brancas se desfazendo ao cair no prato. Eu preferia a parte do rabo, com mais carne e menos espinhas, e também a cabeça, que eu colocava na boca, esmagava com os dentes e então sorvia a delícia de suco. Naquela tarde eu voltei ao Acre, quer dizer, fui à feira, comprei peixinhos de água doce e preparei para a família o manjar na janta.
Certa feita encontrei abiú na feira e comprei uma dúzia. Abiúl (Pouteria caimito) é uma fruta de cor amarela e dá em árvores de até 10 metros de altura, cujas folhas são verdes e brilhantes, tem a copa esgalhada e o tronco com a casca áspera.
Em casa, procurei a rede, limpei a casca lisa e brilhante, fechei os olhos e levei a fruta à boca. Deixei os dentes romper a casca, senti a polpa branca e doce se espalhar entre os dentes, misturar-se com a saliva e ocupar a região do gosto. Abiú é assim: ao ser aberto e comido deixa na boca um desejo que não se quer consumar.
Então voltei no tempo e me vi sentado no galho de um pé de abiú, pegando a fruta com a mão e comendo-a ali mesmo. Debaixo da árvore, meu irmão e os amigos disputavam, em uma algazarra alegre, o prêmio do abiú mais bonito.
As duas experiências mostram que o aroma, o gosto, os sons e as cores despertam a sensibilidade da memória e levam a imaginação a fluir com leveza, permitindo o passeio pela memória emocional, o valioso tesouro que trazemos dentro de nós e que é iluminado em circunstâncias especiais.
Existe um estado de abertura para a percepção do sensível em nossas vidas. Uma situação de esponja aberta para absorver, para sentir a luz do sensível, que ela venha na forma de sons, imagens, odores, sabores ou pensamentos, na hora que vier. Quando passo nas casas simples da zona rural do Nordeste, e vejo a antena parabólica, penso que naquela casa existe um canal aberto para as coisas do vasto mundo.
Costumamos manter os canais abertos para as coisas do mundo, através da internet, dos meios de comunicação, dos livros, dos filmes, das experiências sociais e culturais que envolvem as nossas vidas. De igual maneira, devemos manter a nossa antena interior aberta para os sinais, as cores e as formas que avivam a emoção criativa. E assim, embalados na poesia, somosembriagados em lá maior, onde o sol maior repica nos acordes de um novo dia.
Publicado em 05/07/2012, em artigos, Vivências e marcado como encontro, Poesia, visitas. Adicione o link aos favoritos. Deixe um comentário.
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